Entre criadores e intermediários, a inteligência artificial expõe as assimetrias históricas da remuneração autoral. 

1. O debate sobre IA e direitos autorais: em quem está o foco? 

A ideia de que proteger criações estimula a inovação e garante remuneração aos criadores é uma das promessas centrais do sistema de direitos autorais. Mas, na prática, essa relação é bem menos direta do que o discurso tradicional sugere. 

O estudo Entre Incentivos e Custos: Repensando a Propriedade Intelectual (Costa; Garrote; Ramos, 2025) mostrou que não há evidências consistentes de que o fortalecimento dos direitos autorais gere mais inovação ou crescimento econômico. O impacto da proteção depende do contexto e do equilíbrio entre incentivo e acesso: regras excessivamente restritivas podem, paradoxalmente, inibir a difusão do conhecimento e concentrar benefícios em poucos agentes econômicos. 

O avanço da inteligência artificial reacende esse debate em um novo cenário tecnológico — e, com ele, uma velha pergunta: quem de fato se beneficia das regras de proteção da criação? 

Durante décadas, a discussão sobre remuneração autoral se concentrou em editoras, gravadoras e plataformas digitais de distribuição (Toledo, 2023; UK Parliament, 2024). E, nos últimos anos, o tema da remuneração pelo uso de obras protegidas em sistemas de IA entrou na pauta de consultas públicas, tribunais, relatórios e debates legislativos no Brasil e no mundo (Reino Unido, 2025; ChatGptiseatingtheworld, 2025; Lucchi, 2025; Barreto, 2025). 

Essas discussões costumam se concentrar em duas perguntas principais: 

  1. Quem deve ser reconhecido como autor quando há participação de IA na criação de uma obra? 
  1. Como lidar com o uso de obras protegidas no treinamento de sistemas de IA? 

É nessa segunda frente que o debate sobre remuneração ganha força. Os modelos de IA generativa dependem da mineração de textos e dados — técnica que analisa grandes bases de conteúdos para “aprender” padrões e produzir novas criações (Ribeiro; Garrote, 2025, p. 5). Quando essas bases incluem obras protegidas, surge a questão: como compensar os titulares desses direitos? 

O Projeto de Lei 2.338/2023 propõe que empresas que utilizem conteúdos protegidos para treinar sistemas de IA devam remunerar os detentores dos direitos autorais. Em termos práticos: se um modelo de IA for treinado com músicas, textos, imagens ou vídeos, quem detém os direitos patrimoniais sobre esse conteúdo deve receber por esse uso. 

Mas há um ponto pouco explorado nessa discussão: ao remunerar o uso de obras protegidas, estamos realmente valorizando os criadores, ou apenas reforçando estruturas de intermediação já consolidadas? 

2. Autoria vs. titularidade: quem ganha com os direitos autorais 

Quando se fala em “remunerar autores e criadores” pelo uso de suas obras em sistemas de IA, imagina-se que o dinheiro irá direto para quem compôs a música, escreveu o texto ou produziu a imagem. Na prática, não é assim. 

A legislação brasileira distingue duas dimensões fundamentais dos direitos autorais: 

  • Direitos morais: vinculados à identidade do criador — o direito de ser reconhecido como autor e de preservar a integridade da obra. 
  • Direitos patrimoniais: relacionados à exploração econômica da obra — reprodução, venda, adaptação ou distribuição. Esses podem ser transferidos ou licenciados. 

É sobre os direitos patrimoniais que se baseiam os modelos de remuneração. Assim, o pagamento pelo uso de obras em sistemas de IA tende a ir para quem detém esses direitos econômicos, e não necessariamente para quem criou a obra. 

Em resumo: o direito autoral existe para proteger titulares de direitos autorais, que podem ou não ser as mesmas pessoas que as obras, já que direitos de remuneração podem ter sido contratualmente cedidos a terceiros. E essa distinção é relevante para o debate sobre IA generativa. 

3. A cadeia de remuneração dos direitos autorais 

Entre o criador e o público existe uma longa cadeia de intermediação. Cada etapa — edição, produção, distribuição, gestão coletiva, exibição — envolve agentes que recebem uma parte do valor gerado pela obra. O resultado é previsível: a maior parte da receita não chega diretamente a quem cria, mas a quem intermedeia o acesso e controla os direitos. 

Exemplos setoriais 

  • Jornalismo: jornalistas empregados podem ceder seus direitos patrimoniais ao veículo de comunicação (Portal dos Jornalistas, 2021; Da Silva, 2025). 
  • Mercado editorial: escritores recebem, em média, entre 8% e 12% do preço de capa (Pauquette, 2024; LiteraturaBR, 2025). 
  • Música: no streaming, cerca de 30% da receita fica com a plataforma, 55% com a gravadora e 13% com o artista (Verscht; Anwer, 2023) — o chamado value gap (Litman, 2018). 

Mesmo sistemas de gestão coletiva, como o Ecad, reproduzem essa desigualdade. Em 2024, o Ecad arrecadou R$ 1,8 bilhão, dos quais 85% foram distribuídos a titulares e 15% retidos para custos administrativos e associações. A renda média anual por titular ficou em R$ 4,2 mil — uma fração pequena da renda média dos trabalhadores do setor cultural (IBGE, 2023). 

4. IA generativa e o espelho das assimetrias 

A IA generativa surge como mais um elo nessa cadeia já marcada por desigualdades. As propostas de remuneração pelo uso de obras protegidas no treinamento de IA são apresentadas como formas de valorizar os criadores, mas, dentro de um sistema em que os direitos patrimoniais são concentrados por intermediários, o resultado tende a se repetir. 

Como destaca Mantegna (2024), o sistema atual protege muito mais os titulares econômicos do que os criadores. Expandir essa lógica para a IA pode amplificar as desigualdades existentes. 

Casos recentes ilustram esse movimento. Financial Times, Axel Springer e Le Monde já firmaram contratos com a OpenAI, responsável pelo sistema de IA do Chat GPT, para licenciar seus acervos jornalísticos (Reuters, 2024). Essas negociações beneficiam corporações com grandes catálogos — não os criadores individuais. 

Mesmo os modelos de compensação estudados por Ducru et al. (2024) reforçam essa tendência. Ideias como “pagar para treinar”, “lucros extraordinários” ou “AI royalties” esbarram em limitações técnicas e estruturais. Em quase todos os cenários, quem mais se beneficia são os detentores de grandes acervos — não os artistas que criaram as obras originais. 

Nenhum modelo atual resolve o problema da desigualdade na remuneração autoral. 

A IA apenas reflete, em nova escala, as distorções históricas do mercado cultural. 

5. Direito autoral no Brasil: uma lei de outro tempo 

A Lei 9.610/1998 foi concebida em um contexto pré-digital. Não prevê exceções específicas para mineração de dados nem mecanismos de remuneração proporcional em ambientes digitais. 

Tentativas de reforma vêm desde o Fórum Nacional do Direito Autoral de 2007 (Intervozes, 2010), mas sem avanços concretos. O Projeto de Lei 2.370/2019 buscou modernizar temas como obras órfãs, cessões contratuais e limitações para uso educativo, introduzindo o princípio da “remuneração equitativa”. Mesmo assim, a proposta estagnou. 

Outros países já avançaram mais. Nos EUA, os termination rights permitem que autores retomem seus direitos após 35 anos de cessão (Sumner, 2024). Ainda assim, estudos mostram que o fortalecimento legal não basta. Kretschmer (2012) demonstrou que o aumento da proteção autoral não melhora, por si só, a renda dos criadores — pois a concentração ocorre nas estruturas de mercado, não na lei em si. 

6. Perspectivas para o futuro 

A disputa regulatória em torno da IA generativa não cria novas desigualdades, apenas evidencia as que já existiam. 

As cadeias de remuneração na música, na literatura e no jornalismo mostram um padrão constante: a maior parte da renda gerada por obras criativas não chega a quem cria. 

O Brasil carece de dados e transparência sobre esses fluxos financeiros. Entender como o dinheiro circula entre autores, intérpretes e intermediários é fundamental para repensar políticas públicas e modelos de negócio. 

Como observa Moody (2022), a crise é global: escritores, músicos e artistas ganham menos mesmo em mercados altamente regulados. No contexto da IA, insistir na lógica de remuneração autoral tradicional pode significar apenas digitalizar as desigualdades — e não resolvê-las. 

Referências 

BRASIL. Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998: altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências. Brasília, 1998. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9610.htm 

BRASIL. Projeto de Lei nº 2.338, de 2023: dispõe sobre o desenvolvimento, o fomento e o uso ético e responsável da inteligência artificial com base na centralidade da pessoa humana. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 2023. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2487262 

BRASIL. Projeto de Lei nº 2.370, de 2019: atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 2019. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2198534 

BARRETO, E. PL da IA gera divergências sobre remuneração de direitos autorais. Política Brasileira, 10 set. 2025. Disponível em: https://politicabrasileira.com.br/politica/pl-da-ia-gera-divergencias-sobre-remuneracao-de-direitos-autorais/ 

CHATGPT IS EATING THE WORLD. Map of AI copyright lawsuits. 2025. Disponível em: https://chatgptiseatingtheworld.com/category/map-of-ai-copyright-lawsuits/ 

DUCRU, P; RAIMAN, J; LEMOS, R; GARNER, C; HE, G; BALCHA, H; SOUTO, G; BRANCO, S; BOTTINO, C. AI royalties: an IP framework to compensate artists & IP holders for AI-generated content. Cornell University, 5 abr. 2024. Disponível em: https://arxiv.org/pdf/2406.11857 

ECAD – Escritório Central de Arrecadação e Distribuição. Relatório anual 2024. Rio de Janeiro: ECAD, 2025. Disponível em: https://www4.ecad.org.br/wp-content/uploads/2025/04/Relatorio-anual-versao-mercado-2025.pdf 

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). De 2011 a 2022, setor cultural ganha empresas, mas perde participação na economia. Agência de Notícias IBGE, Editoria: Estatísticas Econômicas, 1 dez. 2023. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/38501-de-2011-a-2022-setor-cultural-ganha-empresas-mas-perde-participacao-na-economia 

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LITMAN, J. What we don’t see when we see copyright as property. The Cambridge Law Journal, Cambridge: Cambridge University Press, v. 77, n. 2, p. 536–559, 23 ago. 2018. Disponível em: https://www.cambridge.org/core/journals/cambridge-law-journal/article/what-we-dont-see-when-we-see-copyright-as-property/C15FED76D1ADF4A0CA1F526B95BE9A88 

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