Quando você assiste a uma série, ouve uma música ou lê um livro, alguém criou aquilo. E é justo que essa pessoa seja recompensada pelo seu trabalho – essa é a ideia por trás dos direitos autorais.
Mas a história não é tão simples assim. Na era digital, essas leis que deveriam proteger os criadores podem produzir efeitos inesperados — e nem sempre socialmente desejáveis. E, algumas vezes, essas regras acabam beneficiando muito mais quem já está no topo do que quem está começando.
As leis de direitos autorais criam vencedores e perdedores
Christian Peukert e Margaritha Windisch, no artigo The economics of copyright in the digital age, sintetizam a evidência empírica mais recente sobre a economia da proteção de direitos de propriedade intelectual e revelam um cenário complexo: as leis e práticas de direitos autorais não são, necessariamente, neutras. Isto é, elas criam vencedores e perdedores, redistribuindo riqueza e acesso de maneiras que afetam profundamente tanto os artistas quanto o público.
Segundo os autores, o desempenho de um artista em relação ao outro não é decorrente apenas das diferenças entre a qualidade do seu trabalho e as práticas mercadológicas por trás dele, mas também de como as próprias leis de propriedade intelectual afetam as criações de maneira desigual. Pense assim: duas músicas que poderiam fazer sucesso têm destinos completamente diferentes dependendo de como as regras do jogo digital favorecem uma em relação à outra — e isso nem sempre tem a ver com talento ou público.
Fiscalização e a Concentração de Ganhos
De acordo com os estudos apresentados pelos autores, o endurecimento de leis antipirataria não possui um efeito duradouro no que diz respeito, por exemplo, ao aumento das receitas com filmes ou música digital. No entanto, o fechamento de sites que facilitam a pirataria não beneficia todos os criadores igualmente. Na época do Napster, no início dos anos 2000, artistas de hip-hop e música eletrônica que trabalhavam com remixes conseguiram alcançar novos públicos através do compartilhamento de arquivos.
A conclusão é que regras duras de propriedade intelectual podem favorecer desproporcionalmente os “superstars” – uma pequena parcela de pessoas, e principalmente, empresas detentoras de direitos de licenciamento. É um fenômeno que acontece em vários mercados: após um período de competição, uma ou algumas empresas se sobressaem e acabam por dominar aquela atividade (Rosen, 1981) e influenciar na própria produção ou manutenção de leis.
Ou seja, a repressão à pirataria, embora seja necessária e pareça uma medida de proteção para toda a classe artística, pode na prática fortalecer a posição dominante dos mais bem-sucedidos, tornando o mercado ainda mais desigual para artistas emergentes. Isso não significa que o instrumento não é importante e não deva ser utilizado, longe disso: implica que a sua estrutura deve ser desenhada com cuidado para mitigar esses efeitos não intencionais.
O papel de plataformas e intermediários na regulação
Outro ponto do debate apresentado por Peukert e Windisch é a relação entre os criadores e as plataformas – não apenas sobre o quanto é gerado, mas sobre como esse valor é dividido. Não é uma questão simples de resolver, até porque a queda nos custos de criação, distribuição e promoção dos trabalhos (diretamente relacionados com o desenvolvimento tecnológico) proporcionou uma entrada no mercado sem precedentes, como apontam Waldfogel (2017), Wu e Zhu (2022) e Aguiar, Reimers e Waldfogel (2024).
Pense em como era fazer música ou publicar um livro há 30 anos: você precisava de um estúdio caro, de uma gravadora ou editora disposta a apostar em você e, hoje, plataformas de streaming servem a milhões de artistas e ferramentas de edição são abundantes, além de plataformas como Patreon que os ajudam a construir bases de “super fãs”. Para escritores, os e-books podem ser publicados com custo praticamente zero, sem precisar imprimir milhares de cópias antes mesmo de saber se alguém vai ler. Tudo isso significa que talentos que antes seriam ignorados pelos “porteiros” da indústria — agentes, gravadoras, editoras — agora conseguem encontrar seu público diretamente. O número de criadores ativos nunca foi tão grande.
Mas essa explosão de criadores também complica a equação dos direitos autorais. Quando as leis de proteção foram criadas, a ideia era incentivar quem dedicava sua vida à criação; hoje, com tantos criadores – alguns profissionais, outros amadores, muitos no meio do caminho – fica mais difícil desenhar uma regra que funcione para todos, e uma lei pensada para proteger direitos pode, na prática, reforçar privilégios de quem controla catálogos gigantes e inibir os novos entrantes.
E afinal, quem são os criadores do século XXI?
Uma fronteira de pesquisa crítica e ainda pouco explorada é a diversidade sociodemográfica dos criadores. Leis de direitos autorais não operam no vácuo: elas interagem com estruturas sociais existentes, como, por exemplo, disparidades de gênero (Peukert e Windisch, 2025).
Brauneis e Oliar (2016) analisaram 14.598.621 registros válidos entre 1978 e 2012 nos EUA e encontraram uma autoria predominantemente masculina**:** dois terços de todos os autores são homens. Ainda que a taxa de autoria masculina tenha diminuído sistematicamente (cerca de 70% em 1978 para cerca de 64% em 2012), há ainda muito a ser feito nessa dimensão.
É importante notar também que esse desequilíbrio de gênero varia entre os tipos de trabalho: Arte (54,34% masculino), Texto (57,45% masculino), Música (75,98% masculino), Filmes (78,16% masculino) e Software (88,22% masculino). Há também variações em outras categorias de representação: pessoas brancas são mais presentes no registro de obras de cinema e software, enquanto pessoas negras e hispânicas são pouco presentes nessas áreas.
No Brasil, não temos dados completos sobre o tema, mas um estudo publicado pelo ECAD em 2024 mostra que mulheres representavam 6% entre os 100 autores de maior rendimento na arrecadação de direitos autorais.
Conclusão: cuidado com todo mundo
A economia dos direitos autorais na era digital está longe de ser uma história simples. As políticas de fiscalização, regulamentação e extensão da proteção funcionam como mecanismos de redistribuição de riqueza, com consequências nem sempre positivas para artistas, consumidores e para a sociedade.
Isso não significa que elas não devam existir, pelo contrário. Revela a necessidade de promover maior diversidade e equidade nos processos de produção cultural e na formação do significado social e que a proteção de direitos autorais também tem um papel nisso.
E aí que entra o papel da regulação em evitar o aprofundamento da desigualdade entre os criadores e promover o impacto no bem-estar público. O grande desafio para o futuro será moldar regras de direitos autorais que não apenas protejam, mas que também promovam um ecossistema criativo mais justo, diverso e acessível para todos.
Literatura citada
Aguiar, L., Reimers, I., & Waldfogel, J. (2024). Platforms and the transformation of the content industries. Journal of Economics & Management Strategy, 33(2), 317-326.
Brauneis, R., & Oliar, D. (2016). Copyright’s Race, Gender and Age: A First Quantitative Look at Registrations. GWU Law School Public Law Research Paper, (2016-48).
Peukert, C., & Windisch, M. (2025). The economics of copyright in the digital age. Journal of Economic Surveys, 39(3), 877-903.
Rosen, S. (1981). The economics of superstars. The American Economic Review, 71(5), 845-858.
Waldfogel, J. (2017). How digitization has created a golden age of music, movies, books, and television. Journal of Economic Perspectives, 31(3), 195-214.
Wu, Y., & Zhu, F. (2022). Competition, contracts, and creativity: Evidence from novel writing in a platform market. Management Science, 68(12), 8613-8634.